Avanços na imunoterapia contra os desafios do escape imunológico do câncer

Quebra do altruísmo homeostático

O trabalho em equipe entre tecidos distintos ou células do mesmo tipo garante a homeostase de sistemas biológicos multicelulares. A homeostase depende de uma complexa rede de comunicação que coordena as funções celulares do organismo. Isso envolve o controle da captação de recursos, sobrevivência e liberdade de proliferação e migração das células por múltiplos mecanismos de sinalização integrada. O rompimento desse controle leva ao surgimento de malignidades, o que está associado a células que se desconectam de sua missão coletiva de manutenção do organismo e passam a funcionar e sobreviver em prol de si mesmas.

O termo “câncer” abrange diversas doenças em que células alteradas perdem a responsividade aos mecanismos de controle de crescimento e sobrevivência. Essas células adquirem a capacidade de invadir tecidos vizinhos e migrar para outras regiões do organismo, rompendo o equilíbrio homeostático. Essas alterações são frequentemente causadas por instabilidade genômica, resultado de fatores ambientais ou envelhecimento, que aumentam a frequência de mutações no DNA ou ativam oncogenes preexistentes, podendo, assim, fornecer à célula vantagens de sobrevivência em relação às células normais.

O aumento da taxa mutacional pode levar a múltiplos fenótipos que são submetidos às diversas pressões seletivas associadas a cada contexto biológico. Células que perdem algum sistema fundamental para sua sobrevivência ou que, mesmo alteradas, mantêm seus mecanismos de alerta que sinalizam para o sistema imune sobre o risco que representam para o organismo acabam sendo eliminadas. No entanto, o acúmulo de modificações em características envolvidas justamente nos mecanismos de controle que levariam a célula à apoptose permite que ela sobreviva e continue seu processo de aquisição das marcas que caracterizam os diferentes tipos de câncer. Essas características típicas incluem mudanças na eficiência de captação de recursos e no tipo de metabolismo energético, favorecendo a intensa proliferação celular. Além disso, as células cancerígenas promovem alterações no ambiente ao seu redor, estimulando a formação de vasos sanguíneos, remodelando a matriz extracelular e criando um ambiente imunossupressor.

Estratégias de resgate da competência imunológica antitumoral

Parte dos avanços das imunoterapias oncológicas mais recentes está justamente associada à busca pela reversão da imunossupressão proporcionada pelo tumor, visando a possibilitar a ação de mecanismos efetores antitumorais tanto naturais do paciente como associados à aplicação de outros agentes imunoterápicos. É nesse contexto que estão as abordagens baseadas no bloqueio de vias de checagem imunológica (immune checkpoint pathways), as quais são patologicamente associadas ao aumento da expressão de proteínas que inibem a ativação de linfócitos T pelas células tumorais. Um exemplo dessa abordagem é a utilização de anticorpos direcionados contra a proteína PD-L1, a qual pode ser expressa em grandes quantidades por células tumorais, sendo o ligante de outra proteína, PD-1, que é expressa, por sua vez, na superfície de linfócitos T ativados e que, ao interagir com o seu ligante, promove a apoptose do linfócito. Esse mecanismo, que fisiologicamente regula o sistema imune, é explorado pelos tumores como um meio de escapar do controle imunológico.

A terapia com células CAR (Chimeric Antigen Receptor) é uma das principais abordagens de imunoterapias oncológicas avançadas. Nessa terapia, células do sistema imunológico, geralmente linfócitos T, são modificadas geneticamente para expressarem um receptor sintético capaz de reconhecer especificamente um antígeno presente nas células tumorais. Apesar dos grandes avanços que a terapia com células CAR vem proporcionando, um dos desafios de sua eficácia é decorrente da imunossupressão induzida pelo tumor. Diante disso, o uso combinado de células CAR e de inibidores de vias de checkpoint vem sendo testado como alternativa em diferentes contextos.

A efetividade das abordagens imunoterápicas que se baseiam na expressão de antígenos específicos pelo tumor, reconhecidos por anticorpos ou receptores quiméricos de antígeno (CARs), pode ser limitada por um mecanismo de escape associado à redução ou perda da expressão dessas moléculas-alvo pelo tumor. Esse escape é consequência da instabilidade genômica e da heterogeneidade de subgrupos de células alteradas no tumor, que podem prevalecer devido à pressão seletiva imposta pela terapia oncológica. Esse tipo de escape pode levar à resistência do tumor à terapia e ser uma das causas da recidiva após um período de remissão.

Construções multiespecíficas aumentam o alcance terapêutico de células CAR

Múltiplas estratégias que visam reduzir o escape decorrente da perda do antígeno alvo por células tumorais vêm sendo desenvolvidas e testadas por diferentes grupos de pesquisa. Uma dessas estratégias envolve a construção de CARs com especificidade para dois antígenos distintos, o que potencialmente reduz a probabilidade de escape tumoral, uma vez que as células precisam perder a expressão dos dois alvos para se tornarem insensíveis à terapia. Nesse contexto, diferentes formatos de CARs biespecíficos vêm sendo propostos, o que envolve a coordenação de dois componentes oriundos de anticorpos distintos que forneçam à célula engenheirada a dupla especificidade, de modo que ela possa se ativar tanto na presença dos dois como na ausência de um dos antígenos. Embora conceitualmente simples, a concepção de CARs biespecíficos eficientes e seguros pode ser muito desafiadora, tanto pela dificuldade de se encontrarem antígenos exclusivos ou diferencialmente expressos em quantidades suficientes e expostos na superfície de células tumorais como pelas múltiplas variáveis de construção e combinação dos componentes extracelulares e intracelulares desses receptores, de modo a levarem a uma ativação adequada das células CAR.

Uma construção chamada TanCAR consiste em montar fragmentos variáveis de anticorpos específicos contra dois antígenos distintos em tandem, separados por um curto peptídeo flexível, na porção extracelular da molécula de CAR. Nessa configuração, ambos os fragmentos de anticorpos estão presentes em uma única molécula de CAR, compartilhando os componentes transmembrana e intracelulares responsáveis pela transdução dos sinais que ativam, sustentam a sobrevivência e promovem a proliferação das células CAR. Normalmente, os domínios transmembrana e intracelulares de um CAR são derivados de componentes de complexos presentes em receptores de linfócitos T e moléculas coestimuladoras.

Além da abordagem TanCAR, as células CAR multiespecíficas podem ser construídas pela expressão independente de duas ou mais moléculas quiméricas distintas. A origem, extensão e ordem de cada componente em cada caso podem ser determinantes para a eficácia do CAR. Essa flexibilidade de desenho e redesenho de CARs é um campo de pesquisa promissor para enfrentar os desafios impostos pelo câncer. Isso possibilita a criação de abordagens personalizadas para tratar diferentes tipos de tumores, melhorando as opções terapêuticas disponíveis.

Em próximos posts abordaremos outras concepções baseadas na união de forças de CARs múltiplos cujos sinais transduzidos são computados pela célula, de modo a fornecer um resultado específico com base no processamento lógico da combinação de diferentes estímulos.

Tandem Cars

 

Referências 

Doroshow DB, Bhalla S, Beasley MB, Sholl LM, Kerr KM, Gnjatic S, Wistuba II, Rimm DL, Tsao MS, Hirsch FR. PD-L1 as a biomarker of response to immune-checkpoint inhibitors. Nat Rev Clin Oncol. 2021 Jun;18(6):345-362. doi: 10.1038/s41571-021-00473-5. 

Grada Z, Hegde M, Byrd T, Shaffer DR, Ghazi A, Brawley VS, Corder A, Schönfeld K, Koch J, Dotti G, Heslop HE, Gottschalk S, Wels WS, Baker ML, Ahmed N. TanCAR: A Novel Bispecific Chimeric Antigen Receptor for Cancer Immunotherapy. Mol Ther Nucleic Acids. 2013 Jul 9;2(7):e105. doi: 10.1038/mtna.2013.32.

Hanahan D, Weinberg RA. Hallmarks of cancer: the next generation. Cell. 2011 Mar 4;144(5):646-74. doi: 10.1016/j.cell.2011.02.013. 

Suarez ER, Chang de K, Sun J, Sui J, Freeman GJ, Signoretti S, Zhu Q, Marasco WA. Chimeric antigen receptor T cells secreting anti-PD-L1 antibodies more effectively regress renal cell carcinoma in a humanized mouse model. Oncotarget. 2016 Jun 7;7(23):34341-55. doi: 10.18632/oncotarget.9114.

Sun L, Jiang G, Ng YY, Xiao L, Du Z, Wang S, Zhu J. T cells with split CARs specific for NKG2D ligands and PD-L1 exhibit improved selectivity towards monocyte-derived cells while effective in eliminating acute myeloid leukaemia in vivo. J Cancer Res Clin Oncol. 2023 Jun 3. doi: 10.1007/s00432-023-04865-1.